Parte II:
Encontra-se aberta pelo Conselho Federal de Contabilidade a Audiência Pública da minuta da norma ITG 2004 – Interação da Entidade com o Meio Ambiente.
Sugestões e comentários devem ser enviados até 10/08/2013 ao Conselho Federal de Contabilidade - endereço eletrônico: ap.nbc@cfc.org.br, fazendo referência à minuta.
Esse Blog divulgará nos próximos posts contribuições e comentários elaborados pelo colega Paulo Homero Júnior, do PPGCC FEA/USP.
Contamos com seus comentários!
O texto a seguir é a continuação dos comentários do Paulo Homero Júnior sobre a minuta proposta e ainda em discussão:
DO
CONCEITO DE OBRIGAÇÃO CONSTRUTIVA
A
despeito desta discussão jurídica, convém lembrar que a contabilidade não se
propõe a representar o patrimônio das entidades em termos jurídicos. Se
olharmos para o lado esquerdo do balanço talvez fique mais fácil perceber que
os contadores não atribuem aos aspectos jurídicos uma autoridade absoluta:
ainda que uma entidade possa demonstrar com precisão de centavos os valores que
tem a receber de seus clientes, sendo tais direitos garantidos por atos
jurídicos perfeitos e devidamente comprovados, os contadores têm o hábito de
constituir uma provisão para perdas nestes créditos. Tal provisão nada mais é
do que uma declaração dos contadores de que “ok, sabemos que estes direitos são
garantidos por lei, mas na prática eles não vão ser respeitados, e nós queremos
representar o que vai acontecer na prática”.
A
Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório
Contábil-Financeiro, em seu item QC12, é clara a este respeito:
QC12. Os
relatórios contábil-financeiros representam um fenômeno econômico em palavras e
números. […] (grifos meus).
A
mesma estrutura conceitual estabelece como características qualitativas
fundamentais das informações contábil-financeiras úteis a relevância e a
representação fidedigna (item QC5). E o já citado item QC12 diz ainda o
seguinte:
QC12. […] Para
ser útil, a informação contábil-financeira não tem só que representar um fenômeno relevante, mas
tem também que representar com fidedignidade
o fenômeno que se propõe representar . […] (grifos meus).
Portanto,
o enfoque da contabilidade não é nos aspectos jurídicos, tampouco nos aspectos morais
e éticos das atividades empresariais. Assim, entendo que a definição de
obrigação construtiva adotada na minuta da ITG 2004, reproduzida abaixo, é
incompatível com a Estrutura Conceitual.
Obrigação construtiva ou não formalizada é a obrigação
assumida pela organização, de origem ética e moral, decorrente da
conscientização oriunda de sua responsabilidade para com o meio ambiente. Esta
obrigação origina-se por meio de publicação de políticas ou declarações
específicas onde criam-se expectativas válidas perante terceiros de que a entidade
assumirá e cumprirá determinadas responsabilidades ambientais. (grifos meus).
De
acordo com a Estrutura Conceitual, a
contabilidade não tem o objetivo de representar obrigações éticas e morais, mas
sim obrigações econômicas. Talvez a
contabilidade devesse ter também estes objetivos; acredito inclusive que este
debate precisa ser empreendido seriamente pela profissão. No entanto, da
maneira como hoje é entendida a contabilidade pelos seus reguladores, incluindo
o CFC, são os aspectos econômicos das atividades empresariais que devem
preponderar nos relatórios contábeis. E dada a intenção declarada na audiência
pública sobre a ITG 2004 de que ela venha a ser compatível com as normas de
contabilidade vigentes, não há como fugir deste enfoque. Uma ampliação ou
reformulação do enfoque da contabilidade requer um debate muito mais amplo.
Isto
posto, cabe discutir como surgem obrigações econômicas. E para isso, obviamente
é preciso avaliar os aspectos jurídicos, que geralmente coincidem com os
aspectos econômicos: leis e contratos são as principais fontes de obrigações
econômicas. Mas assim como no lado esquerdo, também no lado direito do balanço
os contadores se dão a liberdade de ignorar aspectos jurídicos.
Ao
descreverem as características dos passivos, Hendriksen e Van Breda (2007, p.
410) dizem o seguinte:
2. Obrigações ou
deveres eqüitativos e construtivos devem ser incluídos, caso sejam baseados na
necessidadede realização de pagamentos futuros para manter boas relações negociais
ou estejam de acordo com práticas negociais normais.
3. Não pode
haver nenhuma liberdade para evitar o sacrifício futuro. Não é necessário que o
valor da obrigação seja conhecido com certeza, bastando que o sacrifício seja provável.
Em
quase todas as discussões que já presenciei sobre contabilidade ambiental, a
Natura é citada como uma empresa exemplar, e na audiência pública sobre a ITG
2004 não foi diferente. Caso a Natura venha a causar algum dano ambiental pelo
qual não seja legalmente responsável (1), qual será o reflexo contábil?
Provavelmente, o registro de um passivo. E não pela obrigação moral e ética que
ela terá pela reparação de tal dano, mas pela importância econômica para a empresa de sua reputação de
responsabilidade ambiental, tão associada que é à sua imagem junto aos consumidores
e ao público em geral. Por conta disso, ela terá a necessidade de arcar com esta responsabilidade, sob pena de
incorrer em custos maiores pela perda de reputação. Assumindo um comportamento
racional dos gestores da empresa, eles não
terão liberdade para evitar este sacrifício, sendo provável que venham a honrá-lo.
Em
linha com este entendimento, o item 17 do CPC 25 estabelece que:
17. Um evento
passado que conduz a uma obrigação presente é chamado de um evento que cria
obrigação. Para um evento ser um evento que cria obrigação, é necessário que a entidade
não tenha qualquer alternativa realista senão liquidar a obrigação criada pelo evento.
Esse é o caso somente:
(a) quando a liquidação
da obrigação pode ser imposta legalmente; ou
(b) no caso de
obrigação não formalizada, quando o evento (que pode ser uma ação da entidade)
cria expectativas válidas em terceiros de que a entidade cumprirá a obrigação.
(grifos meus).
Neste
item 17 do CPC 25,parece-me claro haver uma distinção entre obrigações
legalmente exigíveis e obrigações construtivas. Em uma das contra-argumentações
a meus questionamentos sobre o item 19 durante a audiência pública da ITG 2004,
foi dito que as declarações públicas sobre sustentabilidade feitas por uma
entidade acarretam responsabilidades legais. Mas se o próprio conceito de
obrigação construtiva é de que ela não é legalmente exigível, declarações que
gerem responsabilidades legais não dão origem a obrigações construtivas, e sim
a obrigações legais.
(1) É difícil imaginar algum dano ambiental
pelo qual uma empresa não seja responsabilizada de acordo com a legislação
brasileira. Conforme dito durante o III CSEAR, nossa legislação ambiental é
reconhecidamente uma das mais avançadas do planeta. Mas nem por isso deixamos
de ter problemas ambientais. Ter em mente esta constatação é importante para
que não se criem expectativas exageradas quanto aos benefícios que a ITG 2004
poderá trazer.
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