Em busca de consistência para o 'valor justo'
Duas iniciativas recentes, uma internacional, e outra lançada pelo Banco Central brasileiro, pretendem aumentar a consistência sobre o controvertido uso do "valor justo" nos balanços.
Fora da Venezuela, onde o governo de Nicolas Maduro recentemente aprovou a Lei Orgânica de Preços Justos, que limita a margem de lucro das empresas e define valores máximos a serem cobrados por alimentos, eletrodomésticos e veículos, entre outros produtos, não costuma existir 100% de certeza sobre o preço das coisas.
Valores padronizados costumam valer temporariamente para tarifas públicas, em setores em que há monopólio de serviço em determinada cidade ou região, tal como abastecimento de água, fornecimento de energia e transporte público. Um bilhete de metrô em São Paulo, por exemplo, é comprado e vendido a R$ 3,00.
Quando se parte para combustível, itens de supermercado e veículos, já começa a existir variação de loja para loja e de bairro para bairro, com a diferença podendo ser ainda maior entre cidades, regiões e países distintos. Até mesmo commodities e ativos financeiros como dólar ou ações bastante negociadas na bolsa podem ter o preço debatido.
Além de as cotações mudarem a cada milissegundo, no mínimo sempre haverá o preço da oferta de compra e o de venda, além do preço médio do dia e também o de fechamento, para causar confusão. Isso sem falar no preço considerado justo (ou preço-alvo), que aparece nos relatórios de corretoras, ou do prêmio pago pela ação que pertence o bloco de controle.
A discussão engrossa quando alguém quer saber qual o valor justo de um imóvel, de uma marca, de uma obra de arte vendida em um leilão ou de um título público ou privado pouco negociado. E, já que perguntar não ofende, quanto vale uma refinaria em Pasadena, no Texas? (ver mais ao lado)
Como se nota, a discussão sobre o que é valor justo transcende o mundo da contabilidade. Mas mesmo entre os homens de negócio há bastante dúvida sobre a aplicação desse conceito.
Com o objetivo de uniformizar o entendimento sobre o que é valor justo e de aumentar a consistência desse tipo de mensuração, o Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (IASB) e o Conselho Internacional de Normas de Avaliação (IVSC) firmaram em março um protocolo de entendimentos para estreitar relações e afinar o discurso sobre o tema.
O IVSC emite princípios que servem de base para os avaliadores atribuírem preços para itens como propriedades para investimento e ativos biológicos. Em seus documentos, o órgão não detalha as premissas que devem ser usadas, mas enumera as metodologias mais usadas e os pontos principais que devem ser considerados em cada tipo de avaliação.
Paralelamente, no Brasil, o Conselho Monetário Nacional determinou, por meio da resolução nº 4.277, que a partir de julho deste ano os bancos passem a documentar e justificar quais critérios seguem para determinar o preço de ativos financeiros em carteira.
"Mesmo no mercado financeiro, é bastante comum a área de contabilidade usar um parâmetro para calcular o valor justo, que é diferente daquele usado pela tesouraria ou pela área de risco", diz Eric Barreto, professor do Insper e da Cinecorp.
A regra do CMN e do Banco Central permite que os bancos usem tanto o valor de mercado divulgado por terceiros como também modelos de apreçamento próprios que tenham como base informações de mercado.
"A ideia é sistematizar melhor processos que estão na cabeça das pessoas, mas que podem ser divergentes entre as áreas da instituição", afirma Barreto.
Conforme o Valor apurou no mercado, bancos grandes já têm esses processos dentro de suas rotinas, mas instituições menores ainda teriam trabalho a fazer.
Um mal-entendido quando se fala de valor justo é confundi-lo com valor de mercado. Em alguns casos, pode haver uma coincidência entre esses dois "valores". Mas nem sempre o preço disponível do mercado é aquele considerado como valor justo, conforme a definição contábil. "O valor de mercado é um pedaço do valor justo. Se há um título público cujo preço 'de mercado' divulgado pela Anbima reflete um número pequeno de negociações, aquele não é necessariamente o valor pelo qual ele seria vendido", explica Barreto.
Nesse caso, diz ele, pode ser melhor usar um modelo de apreçamento, ainda que alimentado por informações de mercado. "O preço de mercado tem a vantagem de ser mais observável. Mas a norma de valor justo prima mais pela qualidade da informação", afirma o especialista.
Outra falha comum é confundir uma das ferramentas usadas na apuração do valor justo, como o modelo de fluxo de caixa descontado, com o próprio conceito. Ou seja, nem toda avaliação feita por meio do fluxo de caixa descontado, que consiste em calcular o valor presente de um fluxo futuro de caixa, resultará em um número que passe no crivo do que se considera valor justo contábil.
Isso ajuda a esclarecer também a diferença entre as definições de valor justo e de "valor em uso" de um ativo, sendo este último é usado de forma adicional quando se realizam testes para saber se o valor investido em um ativo (ou gasto na sua compra) será recuperado, em um exercício conhecido como teste de "impairment". "O fluxo de caixa descontado pode ser usado tanto para apurar o valor em uso, usando preços e custos praticados pela sua empresa, como para o valor justo, usando critérios comuns para o mercado como um todo", diz Ana Cristina França de Souza, vice-presidente da Apsis, consultoria especializada em avaliação de ativos.
Em relação a esse último ponto, os especialistas destacam que precisa ficar claro que o valor justo é um valor de "saída". Traduzindo, na hora de calcular o "valor justo", não interessa quanto aquele ativo vale para a própria entidade, mas quanto um terceiro estaria disposto a pagar por ele. "Num leilão de obra de arte, o valor justo não é o da oferta vencedora, mas o último preço de quando ainda havia dois participantes", explica Ana Cristina, da Apsis. Segundo ela, se o vencedor pagou mais caro é porque ele vê nela alguma característica que as outras pessoas não veem.
Barreto lembra ainda que o conceito de valor justo prevê que se considere o melhor uso para determinado ativo, que pode não ser o uso pretendido pela empresa. "Para uma entidade, um terreno que ela possui vale quanto ele pode gerar de fluxo de caixa dentro do negócio dela. Mas numa visão de mercado, o melhor uso pode ser vender o terreno para fazer um estacionamento ou construir um prédio."
Texto de Fernando Torres, publicado no Valor Econômico, em 15/05/2014.
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