Por Felipe Dreher
Se o fisco tivesse uma máquina capaz de fazer um raio X de sua empresa, o que ele veria? Há cerca de dois anos, o governo constroi um mecanismo com este intuito, batizado de Sistema Público de Escrituração Digital (Sped). Depois de grande esforço para a introdução da Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), o projeto ganha um fôlego extra com a entrada de duas novas obrigatoriedades: a Escrituração Fiscal Digital (EFD) e a Escrituração Contábil Digital ou ECD. A regulamentação cria um ambiente que permite às Secretarias da Fazenda e à Receita Federal cruzar informações contábeis e fiscais, identificando fraudes e sonegação e cobrindo toda a cadeia produtiva.
Preparar a infraestrutura de TI para a regulamentação vem consumindo grande esforço das corporações. Não adaptar-se ou enviar dados errados pode acarretar multas e outras penalidades. Para muitas empresas, mexer nos sistemas a fim de extrair informações fiscais e contábeis é como abrir uma caixa de Pandora.
Para se ter uma ideia do tamanho do "problema", a consultoria fiscal IOB ouviu 405 corporações brasileiras com faturamento entre R$ 3 milhões e R$ 7 bilhões. O estudo revelou que 83% dos entrevistados cometeram algum equívoco nestas áreas em 2007, sendo que 56% deles realizaram transações com fornecedores ou clientes inabilitados pelo governo.
O dilema encontrado nas adequações dos sistemas ao Sped vai além de agregar um software paralelo, adquirir equipamentos e ampliar links de comunicação. As dificuldades começam pela complicada legislação tributária brasileira, transitam pela necessidade da limpeza e o ajuste dos dados inseridos nos softwares de gestão empresariais (ERP), culminando, em muitos casos, na necessidade de mudança de processos e tratamento das informações fiscais e contábeis dentro dos sistemas de origem. "Apenas emitir NF-e sem ter o controle financeiro e de estoque, os dados não fecham nem que a empresa contrate o ganhador do Prêmio Nobel para cuidar da contabilidade", brinca o autor do livro sobre Sped Big Brother Fiscal, Roberto Dias Duarte.
O especialista aponta que são raras as empresas que têm esses dados coerentes e aponta que a regulamentação significa a chegada de uma grande onda de gestão nas companhias no Brasil. "Trata-se da inserção das autoridades legais na Era do Conhecimento", pontua, em referência à necessidade de um maior rigor com os dados imputados pelas corporações em seus sistemas.
Duarte relata uma história fictícia para ilustrar uma cultura vigente nas companhias, mas que deve ser combatida pelo Sped. O caso corporativo remete a um vendedor desesperado para bater sua meta no último dia útil do mês. Ele liga para todos seus contatos na esperança de fechar um negócio que garanta sua comissão. Quando, por fim, consegue realizar uma venda, não carrega consigo o CNPJ de seu cliente. O que ele faz? Apela para o "quebra-galho". Tirando a carteira de cigarros do bolso ou outro produto que contenha o cadastro da empresa, passa o número estampado na embalagem ao departamento financeiro de sua companhia, que usará o dado para faturar o pedido.
Tal prática terá de ficar no passado. "A regulamentação impõe novos processos de controle e gestão, confiabilidade da informação, sincronização de cadastros, consistência e integração entre os sistemas", lista Pedro Bicudo, sócio-diretor da TGT Consult. Mas a adaptação para as novas regras tem consumido muitas horas para ajuste dos bancos de dados, com dificuldades que passam pelo impasse na definição das exigências por parte do governo, traduzindo-se em extensão de prazo e revisão de orçamentos. "Até 2008, as empresas acreditavam que bastava incorporar um sistema e todas as obrigatoriedades do Sped estariam vencidas", enfatiza o especialista.
Faxina na base de dados
Justamente por razões como as expostas acima, Marcelo Kenji Aoyagi, gerente de impostos e responsável pelo Sped Fiscal na Dupont, classifica que o projeto está calcado em "50% processos e 50% tecnologia". O executivo comenta que muito trabalho está em ajustar a massa de informações na base de dados. O ponto chave para o sucesso da adequação à regulamentação, nessa questão, passa pelo envolvimento das áreas de negócio na condução do projeto. Ou seja, mais do que nunca, os profissionais de tecnologia e de desenvolvimento precisam falar a língua da turma da contabilidade e da controladoria.
Formar times multidisciplinares surge como premissa nos projetos de Sped e o velho discurso precisa sair do papel. "Sem conexão com as áreas de negócios, a tecnologia não tem validade", enfatiza Renato Cesar Blanco, gerente-geral de sistemas do centro de competência em tecnologia da informação da Votorantim Industrial. Os profissionais responsáveis pela área de TI respondem pela metade do time que trabalha na regulamentação na empresa, o restante é formado por pessoas ligadas a processos, que atuam na validação das informações e definição do escopo dos ajustes necessários para que os sistemas comecem a rodar já com rotinas equalizadas.
A preocupação mostra que de pouco adianta um layout perfeito se as informações não estão integradas. Até porque, quando os dados extraídos dos sistemas passarem pelos validadores fiscais do governo, a ferida interna será revelada aos olhos da Receita Federal ou das Secretarias das Fazendas. Uma coisa é atualizar manualmente. Outra é rodar os processos de forma automática, em ambiente de produção.
Para facilitar a extração e não enviar informações erradas ao Fisco, a Peugeot Citröen iniciou sua adequação ao Sped centralizando as informações em uma base de dados única. "Além de implantar uma solução fiscal (que valida e coloca os dados no layout definido pelo governo), existia uma necessidade de adequação do processo de alimentação dessa base central de dados", detalha Marco Aurélio da Fonseca, coordenador de sistemas de gestão da indústria automotiva. A medida trata da simplificação da entrada das informações para que sua extração seja mais fácil, direta e coerente, permitindo maior nível de automatização do processo.
Organizar os dados na origem fez com que a Peugeot Citröen canalizasse no software fiscal paralelo sua estratégia de Sped. Graças a isto, os pacotes de atualização lançados pela SAP, que ajustam a plataforma para a regulamentação, não foram aproveitados. "Temos um nível muito grande de personalização no ERP", justifica Fonseca, citando que algumas evoluções na ferramenta foram feitas, bem como a integração do software aos demais sistemas do grupo e a compra de quatro novos servidores.
Padrões
Sistemas de gestão empresarial, softwares fiscais, validadores. Como cada obrigatoriedade - seja EFD, ECD ou NF-e - tem um cronograma próprio orientado para determinados segmentos industriais, as empresas ajustam suas plataformas dentro das respectivas demandas. Os fabricantes de ERP, de uma forma geral, lançam pacotes de atualização para estarem o mais próximo possível das exigências do governo.
A Termomecânica, por exemplo, aposta as fichas para adequar-se ao Sped no ERP da SAP. "A meta", diz Alcir de Paulo Ambrosio, gerente de TI da empresa, "era personalizar a ferramenta o mínimo possível". A escolha do software de gestão da multinacional alemã deveu-se à preferência por utilizar um sistema que não precisasse de soluções satélites ou paralelas para resolver eventuais deficiências. E os pedidos da Receita se encaixam neste conceito.
A ideia inicial da empresa consistia em migrar para uma versão mais recente do ERP. "Mas o fornecedor garantiu que a solução utilizada (a 4.7) suportaria", revela Ambrosio. Com ajuda de uma consultoria fiscal para entender melhor as exigências, a companhia driblou o fato do ERP não ser muito afeito aos aspectos fiscais da gestão corporativa. A IOB ficou como parceira para mapear o layout, identificando as obrigatoriedades. "Existia um total de 322 registros no Sped, dos quais 162 não fazem parte do nosso escopo e 160 eram passíveis de geração", contabiliza Ambrosio, apontando que 10% dos usuários da área administrativa da Termomecânica sofrerão impactos da regulamentação.
Feito o mapeamento, começou o trabalho de extração e teste dos dados para gerar arquivos e identificar o que atendia à necessidade e o que não estava dentro da expectativa. O gerente de TI revela que, no inicio, houve um pouco de divergência devido a não geração adequada entre registros complementares, no qual dois campos não conversavam. Na visão de Ambrosio, a Termomecânica está 85% adequada. "Teríamos condição de gerar o arquivo, porém, alguns dos registros exigidos precisam de alguma intervenção manual", revela o executivo, definindo que quatro profissionais trabalharão, esporadicamente, na geração, validação e transmissão dos documentos.
Quase lá
Os executivos entrevistados por InformationWeek Brasil apresentaram, em comum, o fato que muitos projetos iniciaram a partir da implementação da NF-e, aproveitando os ajustes já realizados para evoluir nas outras obrigatoriedades do Sped. É o caso da Fosfértil, que começou a tratar do assunto em agosto de 2007, em decorrência da emissão de notas fiscais eletrônicas. Dois meses depois, a companhia iniciou a fase de mapeamento de informações requeridas para o layout dos arquivos fiscais e contábeis. O processo se estendeu por outros dois meses, envolvendo profissionais das áreas de TI, controladoria e consultores de parceiros de solução.
Em maio de 2008, a empresa começou a edificar as partes contábil e fiscal, com adoção de uma solução da Sonda Procwork. A postura mostra a tendência na opção por validadores que se adequam ao layout e checam se as informações extraídas do ERP estão coerentes antes do envio para o Fisco. Instalada a ferramenta paralela e feitas as integrações, a companhia partiu para a fase de testes. "Prevíamos entregar o primeiro arquivo à Secretaria da Fazenda (Sefaz) em julho", comenta Daniel Martins Vaz, gerente-executivo de TI da Fosfértil, dizendo que o movimento precisou ser adiado diante das necessidades de ajustes dos sistemas, da base de dados, bem como das constantes alterações exigidas pelo governo.
De toda forma, o primeiro teste de campo saiu da empresa em outubro de 2008. "Ficamos aliviados", revela o executivo, classificando o envio como "consistente". "Sabemos que entregamos um arquivo passível de ser melhorado", reconhece Vaz. A estimativa é que as iniciativas consumam doze meses, mas a empresa afirma que tem de 80% a 90% do projeto concluído. A adaptação parou durante quatro meses e meio quando a Fosfértil realizou um upgrade de versão do ERP.
Na Braskem, o projeto também começou com a implantação de NF-e, no inicio de 2008, e com pacotes de atualização do software de gestão. O trabalho serviu para preparar terreno em sistemas e infraestrutura de TI para suportar as partes fiscais e contábeis da regulamentação. "Aproveitamos o projeto para fazer um upgrade no ERP", comenta Stefan Lepecki, diretor de TI da petroquímica, ao apontar que a medida permitiu economia e concentração de mão-de-obra. O projeto evoluiu ao longo do ano, com os dados sendo adequados à interface do sistema. A companhia apostou em validadores para verificar a consistência dos dados antes do envio. Até o momento, foram investidos R$ 3 milhões nas iniciativas, com previsão de conclusão em fevereiro de 2009.
Já a Carbocloro aplicou R$ 250 mil e aproximadamente 1.740 horas de trabalho no projeto. O assunto veio à pauta ainda em 2007, quando a adequação à regulamentação foi destacada como um ponto fraco dentro do planejamento estratégico da empresa. No ano seguinte, a companhia começou a colocar em prática as ações, sendo que a primeira medida tomada pela TI foi atualizar a versão do ERP da Infor. "Entendemos que não se tratava de uma coisa pequena", pontua José Carlos Padilha, gerente de tecnologia da informação da empresa.
O passo seguinte foi adotar um software fiscal paralelo, que "conversa" com o sistema de gestão onde os dados são carregados. A função da ferramenta é validar as informações antes de enviá-las à Receita. Em outubro, a Carbocloro começou a fase de protótipo. "Um ou outro relatório precisou ser alterado", comenta Padilha, sobre os arquivos testados na ocasião. O executivo revela que o problema mais sério ocorreu no servidor. "Ele não aguentou", sintetiza.
Em dezembro, a Carbocloro envolveu quatro pontas afetadas no projeto (usuários, TI, consultoria externa e provedor de tecnologia) em novos testes, que usaram como base os dados do mês de outubro de 2008. Padilha opina que a iniciativa trouxe grande evolução nas iniciativas de Sped da companhia, dentre elas a possibilidade de identificar ajustes nos cadastros dos clientes e fornecedores, acertos nas operações fiscais de entrada e saída, além de correções de sistema ERP e no modelo de dados. Graças a esse esforço, o executivo calcula que as obrigações fiscais referentes a janeiro de 2009 tenham caído nos data centers do governo nos dias 10 ou 11 de fevereiro.
Puxando o fornecedor
Quando a Alcoa começou a tratar o assunto, há dois anos, o maior obstáculo foi obter uma resposta por parte do fabricante de ERP. O processo, inclusive, envolveu negociação com equipe internacional da companhia. Em meio à cobrança das atualizações do provedor de sistemas, a indústria mapeou processos internamente e com recursos próprios. A data inicial, proposta pela Oracle para entrega das atualizações referentes ao Sped, foi postergada. "Ficamos quase sem tempo para fazer carga e validação. Foi uma luta muito grande", comenta José Carlos Lapa, gerente de programa do escritório de projetos de TI da Alcoa.
No mapeamento dos campos necessários para o Sped Fiscal e Contábil, a empresa descobriu que, das cerca de 3 mil informações novas exigidas, 300 precisariam ser contempladas. "É uma exigência de adaptação de sistemas. Temos alguns legados que são afetados", explica o gerente, apontando que, antes de atualizar tais ferramentas, foi necessário que as mesmas passassem por manutenção e adaptação. Lapa calcula que a regulamentação afetará cerca de 300 funcionários da companhia. Justamente por isto, o pessoal passou por treinamento para adaptar a Alcoa Brasil à nova realidade.
Fonte: InformationWeek Brasil