Insônia
Por Fernanda Torres
O primeiro passo para a legalidade foi encontrar um contador. Essa é uma missão da ordem do divino. A contabilidade é um trabalho mecânico, sem maiores arroubos criativos, mas exige organização e, pior, responsabilidade. Um mau contador, mesmo que bem-intencionado, pode endividar uma família por três gerações seguidas e, em alguns países, levar uma pobre pessoa à prisão. Cabe ao moço conhecer todas, eu disse TODAS, as mudanças da lei, as exigências antigas, presentes e futuras, sem esquecer um Darf, sem deixar de recolher as notas fiscais, os recibos da cozinheira, os gastos com dependentes, ou de notificar a venda do carro e atualizar o valor do imóvel. Se eu tivesse nas minhas costas o peso desse emprego, acho que não teria coragem de cuidar nem de meio cliente. Mas os escritórios de contabilidade atendem centenas de almas penadas. É de dar arrepio. Algumas pessoas fazem sua própria declaração, mas eu produzo teatro, tenho firma... É impossível dar conta sozinha do trabalho hercúleo. Por isso defendo a tese de que deveríamos aprender contabilidade na infância, para já absorvê-la por osmose e agir de forma condicionada na hora do pesadelo.
Se o contador está na base da pirâmide das preocupações legais, lá no alto, majestoso e viril, encontra-se o advogado. Advogado? Melhor não tê-lo. Mas, sem tê-lo, como sabê-lo?! Um bom advogado pode ensinar muito sobre as vilezas da existência e salvar sua pele das minúsculas letras miúdas contidas em todo e qualquer contrato. Mas há um porém. Muitos advogados amam entrar numa briga. É algo simples e compensador para eles, mas complicado para seres humanos comuns, como nós. Um processo pode ser mais doloroso para as partes envolvidas do que para aqueles que cuidam da ação. Por isso defendo as noções básicas de advocacia já no ensino médio, para dar ao réu a chance de se defender do seu próprio advogado.
Algumas verdades só se descobrem com o passar dos anos. O horror da organização legal é uma delas. Dou exemplos: a liberdade sexual que minha geração não conquistou, mas usufruiu de bom grado, formou centenas de casais recém-saídos da adolescência, já dividindo aluguel, amando e traindo como bem entendessem e, em alguns casos, tendo filhos no afã do delírio amoroso. A separação, quando se tem filhos, é o primeiro grande balde de água fria a despertar um desgraçado para a premência de um bom advogado. Conheço dezenas de rapazes que entraram em pânico ao descobrir que existe uma sina chamada pensão. Ou arriscaram o suicídio ao saber que metade dos bens conquistados durante o enlace com aquela morena gostosíssima da praia seria repartida salomonicamente entre os dois. Conheço mulheres que herdaram dívidas profissionais de charlatães inauditos e homens que sustentam ex-esposas de casamentos findos há mais de vinte anos, já que as donzelas se recusam a encontrar outro homem com medo de perder a mamata. Já vi gente educada brigar feito bicho e nobres perder a elegância. Tal martírio marca o fim da ilusão da juventude e a real entrada na idade adulta. É quando se entende que ninguém está à margem dos compromissos sociais.
Eu vivi como hippie até ter filhos. Hoje, guardo o acordo nupcial na gaveta ao lado do testamento e conto com uma "junta médica" para cuidar do tormento da burocracia fiscal. Em compensação, passei a sofrer de insônia. Envelhecer é bom, mas dói.
Texto publicado na Revista Veja Rio nº 1308 em 08 jul. 2009
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