Os maiores rombos nos balanços das seguradoras ainda estão por vir
Valor Online (31/08/2009)
Jonathan Weil, Bloomberg, de Nova York
Quantas pernas um bezerro teria se chamássemos seu rabo de perna? Quatro, é claro. Chamar um rabo de perna não faz dele uma perna, como disse Abraham Lincoln em uma frase que ficou famosa.
Do mesmo modo, chamar uma despesa de ativo não faz dela um ativo. Isso nos leva às estranhas normas contábeis para o setor de seguros, que inclui a Lincoln National, que usa Honest Abe (como é conhecido Abraham Lincoln) como mascote empresarial.
Dê uma olhada no lado dos ativos do balanço da Lincoln National e você verá um item de US$ 10,5 bilhões chamado "custos de aquisição diferidos", sem os quais o patrimônio dos acionistas de US$ 9,1 bilhões desapareceria. O número também é maior que o valor de mercado da companhia, atualmente em US$ 7 bilhões.
Esses custos são apenas isso - custos. Eles incluem comissões de vendas e outras despesas relacionadas à aquisição e renovação de apólices de seguros de clientes. Na maioria das companhias, esses custos precisam ser registrados como despesas quando são contabilizados, afetando imediatamente os lucros.
Mas como ela é uma companhia de seguros vendendo apólices que podem durar muito tempo, a Lincoln pode lançá-las em sua contabilidade como um ativo e ir dando baixa contábil lentamente - por períodos de até 30 anos em alguns casos -, sob um conjunto de regras contábeis implementado há décadas e feitas exclusivamente para o setor de seguros.
Mas esses dias podem estar contados, sob uma decisão unânime tomada em maio pelo FASB, o conselho de contabilidade financeira (Financial Accounting Standards Board) dos Estados Unidos, que vem recebendo pouca atenção da imprensa americana. O FASB deverá anunciar no quarto trimestre uma proposta de reorganização de suas regras para os contratos de seguros. Se tudo correr de acordo com o plano, as seguradoras não poderão mais adiar custos de aquisição de apólices e tratá-los como ativos.
Um problema que o FASB ainda não resolveu é o que fazer com os custos de aquisição diferidos que já estão na contabilidade das companhias. Embora ainda não haja nenhuma decisão a esse respeito, é razoável supor que as seguradoras provavelmente terão de dar baixa neles, reduzindo o patrimônio dos acionistas. O FASB já decidiu que esses custos não são um ativo e devem ser lançados como despesas. Se isso for mantido, não faria sentido deixar as companhias manter seus custos diferidos existentes intactos.
O impacto dessa mudança seria enorme. Alguns exemplos:
Até 30 de junho, a Hartford Financial Services Group mostrava um custo de aquisição diferido de US$ 11,8 bilhões, que representavam 88% do patrimônio de seus acionistas, ou ativos menos obrigações. Em comparação, o valor de mercado da companhia é de apenas US$ 7,3 bilhões.
A MetLife mostrava um custo de aquisição diferido de US$ 20,3 bilhões, equivalente a 74% de seu patrimônio líquido. O custo diferido da Prudential Financial era de US$ 14,5 bilhões, ou 78% do patrimônio. A AFLAC dizia que seu custo era de US$ 8,1 bilhões em 30 de junho, bem mais que seu patrimônio de US$ 6,4 bilhões. A Genworth Financial listava seu custo diferido em US$ 7,6 bilhões, ou 76% dos ativos líquidos. Isso era mais que o dobro do valor de mercado da companhia, de US$ 3,4 bilhões.
As regras sobre os custos de vendas das companhias de seguros são um resquício dos dias em que o chamado princípio do confronto das despesas com as receitas era aceito de uma maneira mais ampla entre os contadores e investidores.
Nas seguradoras de vida, por exemplo, é comum o pagamento adiantado de comissões equivalentes a um ano de prêmios de apólices. Ao expandir o reconhecimento das despesas sobre o tempo de vida das apólices, a idéia é que as companhias deverão comparar suas receitas e as despesas que foram necessárias para gerar essas receitas no mesmo período de tempo.
O problema com essa abordagem é que os custos de aquisição diferidos não atendem o padrão de definição de ativo do FASB. Isso porque as companhias não os controlam uma vez que eles são pagos. O dinheiro já está fora. Não há garantias de que os clientes continuarão renovando suas apólices.
Até mesmo as autoridades reguladoras estaduais, normalmente amigáveis, não reconhecem os custos de aquisição diferidos como um ativo para propósito de avaliação do capital, sob os princípios contábeis estatutários adotados pela National Association of Insurance Commissioners.
Certamente, as decisões tomadas pelo FASB até agora são preliminares. Uma das muitas questões que o conselho está analisando como parte de seu projeto mais amplo para os seguros é como tratar os custos de aquisição. Outras incluem o problema de como medir os riscos das seguradoras nas obrigações com os detentores de apólices.
Enquanto isso, o Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (International Accounting Standards Board - IASB), com sede em Londres, está trabalhando em seu próprio projeto para os seguros e já disse que vai adotar uma postura mais complacente em relação aos custos de aquisição de apólices.
As seguradoras terão de lançá-los como despesas imediatamente. No entanto, o IASB disse que deixará as companhias registrarem antecipadamente uma receita de prêmio suficiente para compensar os custos. Dessa maneira, elas não terão que reconhecer quaisquer perdas no começo.
Até agora, o FASB vem rejeitando o método do IASB.
O curinga desse baralho é o Congresso americano. No segundo trimestre, o setor de seguros uniu-se aos bancos e às cooperativas de crédito para fazer membros do Congresso pressionarem o FASB a mudar suas regras sobre os títulos de dívida, incluindo aqueles garantidos por hipotecas subprime tóxicas, de modo que as companhias possam manter grandes perdas contáveis fora de seus lucros. Como o FASB já cedeu antes, é seguro apostar que o setor vai seguir esse caminho mais uma vez.
Com tanta coisa em jogo, não devemos esperar nada menos do que isso. O que está em jogo não é o valor real dos ativos do setor, e sim a percepção dos investidores sobre o valor deles. Honest Abe não seria enganado.
Valor Online (31/08/2009)
Jonathan Weil, Bloomberg, de Nova York
Quantas pernas um bezerro teria se chamássemos seu rabo de perna? Quatro, é claro. Chamar um rabo de perna não faz dele uma perna, como disse Abraham Lincoln em uma frase que ficou famosa.
Do mesmo modo, chamar uma despesa de ativo não faz dela um ativo. Isso nos leva às estranhas normas contábeis para o setor de seguros, que inclui a Lincoln National, que usa Honest Abe (como é conhecido Abraham Lincoln) como mascote empresarial.
Dê uma olhada no lado dos ativos do balanço da Lincoln National e você verá um item de US$ 10,5 bilhões chamado "custos de aquisição diferidos", sem os quais o patrimônio dos acionistas de US$ 9,1 bilhões desapareceria. O número também é maior que o valor de mercado da companhia, atualmente em US$ 7 bilhões.
Esses custos são apenas isso - custos. Eles incluem comissões de vendas e outras despesas relacionadas à aquisição e renovação de apólices de seguros de clientes. Na maioria das companhias, esses custos precisam ser registrados como despesas quando são contabilizados, afetando imediatamente os lucros.
Mas como ela é uma companhia de seguros vendendo apólices que podem durar muito tempo, a Lincoln pode lançá-las em sua contabilidade como um ativo e ir dando baixa contábil lentamente - por períodos de até 30 anos em alguns casos -, sob um conjunto de regras contábeis implementado há décadas e feitas exclusivamente para o setor de seguros.
Mas esses dias podem estar contados, sob uma decisão unânime tomada em maio pelo FASB, o conselho de contabilidade financeira (Financial Accounting Standards Board) dos Estados Unidos, que vem recebendo pouca atenção da imprensa americana. O FASB deverá anunciar no quarto trimestre uma proposta de reorganização de suas regras para os contratos de seguros. Se tudo correr de acordo com o plano, as seguradoras não poderão mais adiar custos de aquisição de apólices e tratá-los como ativos.
Um problema que o FASB ainda não resolveu é o que fazer com os custos de aquisição diferidos que já estão na contabilidade das companhias. Embora ainda não haja nenhuma decisão a esse respeito, é razoável supor que as seguradoras provavelmente terão de dar baixa neles, reduzindo o patrimônio dos acionistas. O FASB já decidiu que esses custos não são um ativo e devem ser lançados como despesas. Se isso for mantido, não faria sentido deixar as companhias manter seus custos diferidos existentes intactos.
O impacto dessa mudança seria enorme. Alguns exemplos:
Até 30 de junho, a Hartford Financial Services Group mostrava um custo de aquisição diferido de US$ 11,8 bilhões, que representavam 88% do patrimônio de seus acionistas, ou ativos menos obrigações. Em comparação, o valor de mercado da companhia é de apenas US$ 7,3 bilhões.
A MetLife mostrava um custo de aquisição diferido de US$ 20,3 bilhões, equivalente a 74% de seu patrimônio líquido. O custo diferido da Prudential Financial era de US$ 14,5 bilhões, ou 78% do patrimônio. A AFLAC dizia que seu custo era de US$ 8,1 bilhões em 30 de junho, bem mais que seu patrimônio de US$ 6,4 bilhões. A Genworth Financial listava seu custo diferido em US$ 7,6 bilhões, ou 76% dos ativos líquidos. Isso era mais que o dobro do valor de mercado da companhia, de US$ 3,4 bilhões.
As regras sobre os custos de vendas das companhias de seguros são um resquício dos dias em que o chamado princípio do confronto das despesas com as receitas era aceito de uma maneira mais ampla entre os contadores e investidores.
Nas seguradoras de vida, por exemplo, é comum o pagamento adiantado de comissões equivalentes a um ano de prêmios de apólices. Ao expandir o reconhecimento das despesas sobre o tempo de vida das apólices, a idéia é que as companhias deverão comparar suas receitas e as despesas que foram necessárias para gerar essas receitas no mesmo período de tempo.
O problema com essa abordagem é que os custos de aquisição diferidos não atendem o padrão de definição de ativo do FASB. Isso porque as companhias não os controlam uma vez que eles são pagos. O dinheiro já está fora. Não há garantias de que os clientes continuarão renovando suas apólices.
Até mesmo as autoridades reguladoras estaduais, normalmente amigáveis, não reconhecem os custos de aquisição diferidos como um ativo para propósito de avaliação do capital, sob os princípios contábeis estatutários adotados pela National Association of Insurance Commissioners.
Certamente, as decisões tomadas pelo FASB até agora são preliminares. Uma das muitas questões que o conselho está analisando como parte de seu projeto mais amplo para os seguros é como tratar os custos de aquisição. Outras incluem o problema de como medir os riscos das seguradoras nas obrigações com os detentores de apólices.
Enquanto isso, o Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (International Accounting Standards Board - IASB), com sede em Londres, está trabalhando em seu próprio projeto para os seguros e já disse que vai adotar uma postura mais complacente em relação aos custos de aquisição de apólices.
As seguradoras terão de lançá-los como despesas imediatamente. No entanto, o IASB disse que deixará as companhias registrarem antecipadamente uma receita de prêmio suficiente para compensar os custos. Dessa maneira, elas não terão que reconhecer quaisquer perdas no começo.
Até agora, o FASB vem rejeitando o método do IASB.
O curinga desse baralho é o Congresso americano. No segundo trimestre, o setor de seguros uniu-se aos bancos e às cooperativas de crédito para fazer membros do Congresso pressionarem o FASB a mudar suas regras sobre os títulos de dívida, incluindo aqueles garantidos por hipotecas subprime tóxicas, de modo que as companhias possam manter grandes perdas contáveis fora de seus lucros. Como o FASB já cedeu antes, é seguro apostar que o setor vai seguir esse caminho mais uma vez.
Com tanta coisa em jogo, não devemos esperar nada menos do que isso. O que está em jogo não é o valor real dos ativos do setor, e sim a percepção dos investidores sobre o valor deles. Honest Abe não seria enganado.
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