Apesar dos novos desafios e exigências, profissão e profissionais ganham mais importância e qualidade na era digital
Por Lucia Rebouças
Contadora há dez anos, Silvia Cristina Pereira da Silva teve de mudar seu perfil para se adaptar ao ambiente cada vez mais digital da sua profissão, principalmente depois que o Sistema Público de Escrituração Digital (Sped) entrou em vigor. O contador precisa ser muito mais ativo, estar por dentro da última palavra em normas contábeis e perfeitamente afinado com as imposições do Fisco. É com esse perfil em mente que Silvia está se preparando para encarnar seu novo papel: já fez três cursos de treinamento e pretende fazer muitos outros. “Não é possível assimilar tudo de uma vez só”, afirma ela, que, apesar das novas atribulações que a era digital trouxe para a sua vida, está feliz porque ambos, profissão e profissional, ganharam mais importância e qualidade.
Silvia sabe que o Sped não é apenas um projeto de TI do governo federal. Na era digital, toda a escrituração da empresa que era feita em papel e ficava guardada a espera de uma visita, agora é eletrônica e fica viva nos computadores da Receita Federal. Nesta nova dinâmica, o papel do contador deixa de ser o de um mero guarda-livros. Erros na escrituração sob sua responsabilidade, que podiam nunca ser descobertos, agora não passarão mais despercebidos e o contador será punido por seus atos, no mínimo perdendo o cliente.
Os treinamentos que Silvia fez foram oferecidos por clientes e pelo escritório de contabilidade Confirp Consultoria Contábil, no qual trabalha há oito anos. Silvia diz que o Sped é um instrumento de combate à sonegação fiscal e à informalidade nas mãos da Receita Federal. “É um processo rigoroso de migração de documentos para o formato digital que implica uma verificação periódica das atividades contábeis e fiscais do contribuinte, por meio de cruzamento de dados, o que vai gerar uma maior exposição do trabalho do contador. Para evitar problemas na validação de dados fiscais será preciso quintuplicar os cuidados.”
O relato da contadora e suas preocupações, longe de ser um caso isolado, é atualmente foco de discussão de toda a categoria. A implantação do Sped, a Lei 11.638, a convergência ao International Financial Reporting Standards (IFRS, ou regras internacionais de contabilidade, em inglês), desenvolvimento da carreira do contador do futuro são os principais temas na pauta da 21ª Convenção dos Contabilistas do Estado de São Paulo, nos dias 19 a 21 de agosto na capital.
Silvia já fez também cursos para conhecer o IFRS, que está sendo adotado para as demonstrações financeiras das companhias brasileiras e que representa outra revolução na vida do contador. Embora ainda não tenha clientes que precisem adotar o IFRS, Silvia está no caminho certo ao não deixar para amanhã o que pode fazer hoje. Mais cedo do que muita gente pensa, o Sped vai acabar levando todas as empresas que fazem demonstrações contábeis a usar o padrão internacional. A Receita Federal já sinalizou que até 2012 todas as companhias migrarão para o Sped.
Atualmente, embora já haja uma convergência de toda a contabilidade brasileira para o IFRS – isso porque as normas traduzidas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), que se aplicam às companhias abertas e às de grande porte (com faturamento a partir de R$ 300 milhões e/ou ativos de R$ 250 milhões), conforme previsto pela Lei 11.638, de dezembro de 2007, foram adotadas também pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC). Apenas a contratação de auditoria independente é obrigatória somente para aquelas atingidas pela Lei. Por conta dessa situação, um grande contingente de contadores acha que o IFRS não é para eles. Se os balanços não são auditados ninguém vai ver qual padrão contábil está sendo usado, justificam alguns. Mas se enganam: afinal, com o Sped, as demonstrações de todas as companhias terão uma auditoria anual feita pela Receita.
Por enquanto o Sped, com seus três pilares – a Escrituração Contábil Digital (ECD), a Escrituração Fiscal Digital e na Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) –, tem aplicação limitada por tipo, porte e setores de atividade econômica. São obrigadas a fazer a ECD apenas as empresas com faturamento acima de R$ 60 milhões por ano e que são tributadas pelo lucro real. Na prática isso significa grandes empresas, que são cerca de 15 mil de um universo de 3,2 milhões com registro (CNPJ) válidos. Precisam adotar a ECD todas as empresas que pagam Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A entrega da NF-e já é exigida de 94 setores de atividade econômica.
Já no caso do IFRS, a expectativa é de que, no final deste ano, o Brasil esteja totalmente alinhado ao padrão internacional. Até 2008 foram emitidas 14 normas que traduziram metade das diferenças entre o princípio contábil brasileiro e internacional. Para as companhias com ações negociadas em Bolsas, o uso do IFRS será obrigatório a partir de 2010.
Resistência
A grande revolução cultural promovida pela era digital e pelo IFRS, porém, ainda não foi percebida pela maioria dos 400 mil contadores e os 70 mil escritórios de contabilidade, que, conforme o CFC, estão em atividade no País. Silvia diz que, pelo que tem observado, o mercado de profissionais e de escritórios de contabilidade vai ficar menor. “Estou vendo muita gente partir para outros ramos de atividade por não querer mudar sua rotina de vida.”
Temístocles Amaral Ribeiro, sócio do escritório de contabilidade Adccont Consultoria Contábil e Financeira – há 13 anos no mercado, com 40 colaboradores e 80 clientes, a maioria empresas de médio porte –, acredita que o processo de transformação será doloroso para muitos. “Ou o profissional se converte ou será expulso do mercado. No setor ainda há muita resistência às mudanças. Muita gente ainda não acordou.”
O diretor técnico do CFC, Nelson Mitimasa Jinzenji, professa crença semelhante. “Considerando o universo de profissionais de contabilidade aptos ao exercício da atividade, pode-se assegurar que apenas uma parcela ínfima está preparada para trabalhar com as normas contábeis convergentes com as do IFRS,” diz ele.
Para Marco Antonio Zanini, diretor geral da NFe do Brasil, que estruturou uma série de produtos e serviços adaptáveis a diferentes perfis de clientes, a importância do contador aumentou, mas ainda é grande a desinformação no meio contábil. “A mudança tem sido motivo de angústia para a categoria. A questão prioritária é como se adaptar à nova realidade. A maioria dos contadores ainda não está enxergando o tamanho da transformação. Eles ainda estão vendo só a questão da NF-e.”
A quantidade de mão de obra pode diminuir, mas a qualidade será maior. Com o Sped, o contador precisa estar totalmente antenado à legislação fiscal e contábil e isso dificulta a atividade de maus profissionais, afirma. Não é o que ocorre atualmente. Zanini conta o caso de um escritório de advocacia especializado em verificar práticas fiscais. Sua atividade é procurar pagamentos indevidos de impostos, que na maioria das vezes ocorreu por falha do contador. Em geral, por não estar familiarizado com a tributação, o contador faz a empresa pagar tudo que o Fisco exige. A descoberta de erros tem garantido sucesso ao escritório e permitido a muitas empresas obterem gordos valores como ressarcimento.
“O sistema digital protege quem está pagando pelo serviço. Hoje em dia, o cliente contrata o contador ou o escritório de contabilidade, mas não tem como saber se o trabalho está certo porque a prateleira não identifica erros. Só vai sobreviver quem se adaptar”, diz Zanini citando o pai da teoria evolucionista, Charles Darwin.
Concentração
O Sped transformará o negócio dos escritórios contábeis. O modelo de atendimento das obrigações fiscais e de guarda-livros mediante o pagamento de honorários mensais poderá se tornar inviável se não tiverem como oferecer um valor agregado. Na avaliação de Zanini, o cenário atual não é confortável para os escritórios de contabilidade e a era digital poderá levar a uma concentração de mercado. Na sua opinião, o principal problema no horizonte dos escritórios de contabilidade é de investimento e amortização.
Para dar conta das mudanças, os escritórios vão ter de investir em sistemas de informática e o mais barato não sai por menos de R$ 100 mil, diz Zanini. “Uma forma de amortizar o custo que o investimento terá para o escritório seria dividi-lo com os clientes, mas isso pode significar perdê-los para a concorrência, o que não torna essa uma boa opção.” O escritório que quiser continuar na atividade vai ter de vencer o desafio de administrar custos e benefícios.
O sócio do Adccont coloca outra pedra no caminho da sobrevivência de alguns escritórios contábeis. “Hoje muitos atuam como meros despachantes, emissores de guias para pagamento de impostos. Agora, precisarão de recursos tecnológicos e sistemas adequados. Isso implica um aculturamento do prestador de serviço, o que vai ser difícil.”
Para os especialistas nas áreas fiscal e tributária da consultoria Aliz Inteligência Sustentável, Jorge Campos e Ricardo Parada, se repaginar é imprescindível para o profissional de contabilidade, mas a conscientização do cliente não é menos importante. “É necessária uma mudança da cultura corporativa porque, com o Sped, o Fisco não vai querer apenas fotos mas um filme completo da atuação da empresa”, afirmam. Eles dizem que já estão detectando falta de mão de obra qualificada para atender o mercado.
Embora concorde que os escritórios de contabilidade têm um grande esforço pela frente, Ana Maria Elorrieta, presidente do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), não vê um momento ruim para o mercado. “Hoje, as empresas costumam dar treinamento ao seu quadro pessoal de contabilidade. Mas deveriam ter um programa no mínimo anual de treinamento nessa área para garantir que seu pessoal esteja atualizado. É comum as empresas fazerem isso em outras áreas e deveriam fazê-lo também com a contabilidade. Os escritórios de contabilidade precisam fazer o mesmo”, diz Elorrieta.
Para quem quer adaptar-se ao Sped, a experiência da Adccont pode servir como guia. A primeira grande mudança do escritório foi na adaptação de sistemas. “Estamos investindo entre R$ 50 mil e R$ 60 mil na modernização de máquinas, na compra de um novo servidor e softwares. Para fazer o investimento a Adccont está usando uma linha de crédito do BNDES.”
Na qualificação da mão de obra, Ribeiro diz que começaram treinando profissionais que atendem clientes do escritório ligados a empresas estrangeiras – e por isso mesmo com um grau mais avançado de exigências para a contabilização. “Foi uma correria. Achávamos que o prazo para a entrega da escrituração contábil digital, que expirava em 30 de junho último, ia ser prorrogado porque a Receita ainda não havia sequer disponibilizado o formulário para a declaração de Imposto de Renda. Mas isso não aconteceu e acabamos debutando em Sped contábil,” informa.
Agora o Adccont está se adaptando à interação online com a Receita para contabilizar a NF-e. Com o Sped, para faturar a nota, a empresa precisa ter autorização prévia da Receita e não pode mais mandar a informação sumarizada. “Não podemos mais mandar parte do corpo, temos de mandar tudo, até as entranhas”, ironiza Ribeiro.
Segundo os especialistas da Aliz, o Sped exige uma contabilidade analítica. “Antes era feito o lançamento do valor total das notas fiscais emitidas naquele dia. Agora é preciso contabilizar nota por nota, informando o valor de cada uma, para quem foi emitida e quantidade de produto vendida”, acrescenta Parada.
Despreparo
A falta de mão de obra qualificada disponível no mercado também já foi detectada por Guillermo Braunbeck, professor da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (Fipecafi). O problema é mais grave quando o assunto é a elaboração de demonstrações financeiras em IFRS. “É difícil trazer gente dos bancos escolares preparada para trabalhar com as novas práticas contábeis. Existem mais de mil cursos de contabilidade no País, mas seus currículos são muito abertos e a maioria deles nem sequer tem em sua grade matérias que tratem da contabilidade internacional. Muita gente que sai da faculdade nem sequer sabe o que é IFRS”, diz o professor.
O IFRS coloca diante do profissional uma nova realidade estrutural, uma mudança profunda de conceitos. Não se trata apenas de aprender novas definições e lidar com elas. Como exemplo, Braun-beck cita a questão da primeira coisa que olha num balanço, que é o ativo. Na definição clássica, “ativos são bens e direitos”. Hoje a definição inclui a ideia de benefício econômico futuro. “É preciso enxergar a promessa de entrega de um valor na hora de classificar algo como ativo.”
Para usar o IFRS, o contador deve deixar de agir como uma máquina de registro e passar a ser um intérprete de eventos econômicos, e a exercer julgamentos. “Se antes o contador podia agir como mero fotógrafo, hoje precisa ser capaz de desenhar o futuro a partir das informações contábeis”, acrescenta o professor da Fipecafi. A nova postura não é simples. Incorporá-la é especialmente complicado para profissionais com muitos anos de prática no modelo antigo, porque significa uma mudança de modelo mental.
Diagnóstico
Preencher todas as lacunas de uma vez não é humanamente impossível. Para evitar cair em depressão diante da quantidade de conhecimento que vai precisar acumular para lidar com o Sped e com o IFRS, a recomendação do professor da Fipecafi é fazer um diagnóstico do que precisa aprender no curto prazo para atender as exigências do seu cliente. “O importante é evitar sair fazendo treinamento a torto e a direito, gastando tempo e dinheiro em vão. É preciso avaliar as necessidades do cliente e então se preparar para atendê-las. Tem de ir cobrindo as lacunas à medida que elas vão aparecendo”, recomenda.
Outro conselho que Braunbeck dá para o contador é achar formas de construir conhecimento. “Uma boa opção para fazer isso é levantar da cadeira e ir conversar com as outras áreas, sobretudo com o pessoal do departamento financeiro, onde houve mudança radical na contabilização de pagamentos com opções de ações, leasing, fechamento de negócios.” O professor também recomenda aos contadores “colar” nos profissionais de consultoria que a empresa tenha contratado para auxiliá-la a saltar para o universo do IFRS. “Depois que o contrato acaba, os consultores vão embora e quanto mais o contador puder aprender durante a consultoria, melhor para ele depois.”
Para os interessados em estar no topo do ranking de qualificação profissional vale uma consulta ao currículo global, desenvolvido por uma comissão intergovernamental, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), conhecida como International Standards of Accounting and Reporting (Isar). A comissão elenca nesse currículo tudo o que o profissional precisa saber para atender às exigências atuais da contabilidade internacional.
Para o contador que não quer perder o bonde da qualificação, os especialistas da Aliz recomendam também cursos para conhecer a tecnologia e a lógica dos arquivos digitais e de atualização contábil. Contadores que trabalham na elaboração de balanços precisam estar conscientes de que o IFRS não é estático e que tem sofrido mudanças constantes. Na área de IFRS existem boas opções na Fundação Getulio Vargas (FGV) e na Fipecafi, afirmam.
Para preparar-se para o Sped, a dica para o contador é primeiro entender o cenário da automação de processos de entrega de dados para o Fisco. Em seguida, buscar a melhor maneira de adaptar a infra-estrutura do escritório e aprender quais são os pontos de atenção para lidar com o Fisco digital. Conforme Zanini, com a escrituração digital, o contador precisa estar up to date com a última palavra em legislação tributária, o que não é a realidade atual a não ser dos grandes escritórios ou dos departamentos de contabilidade de companhias de primeira linha. Mesmo para estes, a tarefa não é fácil porque novas portarias são emitidas quase diariamente pela Receita.
Exceção
Na área de auditoria a situação do profissional está mais tranquila, de acordo com a presidente do Ibracon. “Não haverá falta de profissionais, até porque o universo de empresas obrigadas a auditar seus balanços é menor do que o daquelas obrigadas a fazer demonstrações contábeis.” São obrigadas a contratar auditoria para seus balanços as companhias abertas e as empresas de grande porte.
Na capacitação da mão de obra também há uma oferta maior para o auditor. Essa área está praticamente coberta pelas grandes empresas internacionais de auditoria que fazem importantes esforços de treinamento de pessoal em todo o mundo. Conforme Braunbeck, quem quiser mostrar ao cliente que está atualizado e que é capaz de dar conta do serviço no novo ambiente digital pode recorrer também aos programas de certificação.
A função do auditor é dar um selo de qualidade às demonstrações contábeis. Os profissionais que trabalham em grandes firmas internacionais não terão problemas para se adaptar. Mas o professor da Fipecafi diz que o desafio é grande para o pequeno auditor. “Será que ele está preparado?” O feeling do professor diz que não.
Silvia sabe que o Sped não é apenas um projeto de TI do governo federal. Na era digital, toda a escrituração da empresa que era feita em papel e ficava guardada a espera de uma visita, agora é eletrônica e fica viva nos computadores da Receita Federal. Nesta nova dinâmica, o papel do contador deixa de ser o de um mero guarda-livros. Erros na escrituração sob sua responsabilidade, que podiam nunca ser descobertos, agora não passarão mais despercebidos e o contador será punido por seus atos, no mínimo perdendo o cliente.
Os treinamentos que Silvia fez foram oferecidos por clientes e pelo escritório de contabilidade Confirp Consultoria Contábil, no qual trabalha há oito anos. Silvia diz que o Sped é um instrumento de combate à sonegação fiscal e à informalidade nas mãos da Receita Federal. “É um processo rigoroso de migração de documentos para o formato digital que implica uma verificação periódica das atividades contábeis e fiscais do contribuinte, por meio de cruzamento de dados, o que vai gerar uma maior exposição do trabalho do contador. Para evitar problemas na validação de dados fiscais será preciso quintuplicar os cuidados.”
O relato da contadora e suas preocupações, longe de ser um caso isolado, é atualmente foco de discussão de toda a categoria. A implantação do Sped, a Lei 11.638, a convergência ao International Financial Reporting Standards (IFRS, ou regras internacionais de contabilidade, em inglês), desenvolvimento da carreira do contador do futuro são os principais temas na pauta da 21ª Convenção dos Contabilistas do Estado de São Paulo, nos dias 19 a 21 de agosto na capital.
Silvia já fez também cursos para conhecer o IFRS, que está sendo adotado para as demonstrações financeiras das companhias brasileiras e que representa outra revolução na vida do contador. Embora ainda não tenha clientes que precisem adotar o IFRS, Silvia está no caminho certo ao não deixar para amanhã o que pode fazer hoje. Mais cedo do que muita gente pensa, o Sped vai acabar levando todas as empresas que fazem demonstrações contábeis a usar o padrão internacional. A Receita Federal já sinalizou que até 2012 todas as companhias migrarão para o Sped.
Atualmente, embora já haja uma convergência de toda a contabilidade brasileira para o IFRS – isso porque as normas traduzidas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), que se aplicam às companhias abertas e às de grande porte (com faturamento a partir de R$ 300 milhões e/ou ativos de R$ 250 milhões), conforme previsto pela Lei 11.638, de dezembro de 2007, foram adotadas também pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC). Apenas a contratação de auditoria independente é obrigatória somente para aquelas atingidas pela Lei. Por conta dessa situação, um grande contingente de contadores acha que o IFRS não é para eles. Se os balanços não são auditados ninguém vai ver qual padrão contábil está sendo usado, justificam alguns. Mas se enganam: afinal, com o Sped, as demonstrações de todas as companhias terão uma auditoria anual feita pela Receita.
Por enquanto o Sped, com seus três pilares – a Escrituração Contábil Digital (ECD), a Escrituração Fiscal Digital e na Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) –, tem aplicação limitada por tipo, porte e setores de atividade econômica. São obrigadas a fazer a ECD apenas as empresas com faturamento acima de R$ 60 milhões por ano e que são tributadas pelo lucro real. Na prática isso significa grandes empresas, que são cerca de 15 mil de um universo de 3,2 milhões com registro (CNPJ) válidos. Precisam adotar a ECD todas as empresas que pagam Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A entrega da NF-e já é exigida de 94 setores de atividade econômica.
Já no caso do IFRS, a expectativa é de que, no final deste ano, o Brasil esteja totalmente alinhado ao padrão internacional. Até 2008 foram emitidas 14 normas que traduziram metade das diferenças entre o princípio contábil brasileiro e internacional. Para as companhias com ações negociadas em Bolsas, o uso do IFRS será obrigatório a partir de 2010.
Resistência
A grande revolução cultural promovida pela era digital e pelo IFRS, porém, ainda não foi percebida pela maioria dos 400 mil contadores e os 70 mil escritórios de contabilidade, que, conforme o CFC, estão em atividade no País. Silvia diz que, pelo que tem observado, o mercado de profissionais e de escritórios de contabilidade vai ficar menor. “Estou vendo muita gente partir para outros ramos de atividade por não querer mudar sua rotina de vida.”
Temístocles Amaral Ribeiro, sócio do escritório de contabilidade Adccont Consultoria Contábil e Financeira – há 13 anos no mercado, com 40 colaboradores e 80 clientes, a maioria empresas de médio porte –, acredita que o processo de transformação será doloroso para muitos. “Ou o profissional se converte ou será expulso do mercado. No setor ainda há muita resistência às mudanças. Muita gente ainda não acordou.”
O diretor técnico do CFC, Nelson Mitimasa Jinzenji, professa crença semelhante. “Considerando o universo de profissionais de contabilidade aptos ao exercício da atividade, pode-se assegurar que apenas uma parcela ínfima está preparada para trabalhar com as normas contábeis convergentes com as do IFRS,” diz ele.
Para Marco Antonio Zanini, diretor geral da NFe do Brasil, que estruturou uma série de produtos e serviços adaptáveis a diferentes perfis de clientes, a importância do contador aumentou, mas ainda é grande a desinformação no meio contábil. “A mudança tem sido motivo de angústia para a categoria. A questão prioritária é como se adaptar à nova realidade. A maioria dos contadores ainda não está enxergando o tamanho da transformação. Eles ainda estão vendo só a questão da NF-e.”
A quantidade de mão de obra pode diminuir, mas a qualidade será maior. Com o Sped, o contador precisa estar totalmente antenado à legislação fiscal e contábil e isso dificulta a atividade de maus profissionais, afirma. Não é o que ocorre atualmente. Zanini conta o caso de um escritório de advocacia especializado em verificar práticas fiscais. Sua atividade é procurar pagamentos indevidos de impostos, que na maioria das vezes ocorreu por falha do contador. Em geral, por não estar familiarizado com a tributação, o contador faz a empresa pagar tudo que o Fisco exige. A descoberta de erros tem garantido sucesso ao escritório e permitido a muitas empresas obterem gordos valores como ressarcimento.
“O sistema digital protege quem está pagando pelo serviço. Hoje em dia, o cliente contrata o contador ou o escritório de contabilidade, mas não tem como saber se o trabalho está certo porque a prateleira não identifica erros. Só vai sobreviver quem se adaptar”, diz Zanini citando o pai da teoria evolucionista, Charles Darwin.
Concentração
O Sped transformará o negócio dos escritórios contábeis. O modelo de atendimento das obrigações fiscais e de guarda-livros mediante o pagamento de honorários mensais poderá se tornar inviável se não tiverem como oferecer um valor agregado. Na avaliação de Zanini, o cenário atual não é confortável para os escritórios de contabilidade e a era digital poderá levar a uma concentração de mercado. Na sua opinião, o principal problema no horizonte dos escritórios de contabilidade é de investimento e amortização.
Para dar conta das mudanças, os escritórios vão ter de investir em sistemas de informática e o mais barato não sai por menos de R$ 100 mil, diz Zanini. “Uma forma de amortizar o custo que o investimento terá para o escritório seria dividi-lo com os clientes, mas isso pode significar perdê-los para a concorrência, o que não torna essa uma boa opção.” O escritório que quiser continuar na atividade vai ter de vencer o desafio de administrar custos e benefícios.
O sócio do Adccont coloca outra pedra no caminho da sobrevivência de alguns escritórios contábeis. “Hoje muitos atuam como meros despachantes, emissores de guias para pagamento de impostos. Agora, precisarão de recursos tecnológicos e sistemas adequados. Isso implica um aculturamento do prestador de serviço, o que vai ser difícil.”
Para os especialistas nas áreas fiscal e tributária da consultoria Aliz Inteligência Sustentável, Jorge Campos e Ricardo Parada, se repaginar é imprescindível para o profissional de contabilidade, mas a conscientização do cliente não é menos importante. “É necessária uma mudança da cultura corporativa porque, com o Sped, o Fisco não vai querer apenas fotos mas um filme completo da atuação da empresa”, afirmam. Eles dizem que já estão detectando falta de mão de obra qualificada para atender o mercado.
Embora concorde que os escritórios de contabilidade têm um grande esforço pela frente, Ana Maria Elorrieta, presidente do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), não vê um momento ruim para o mercado. “Hoje, as empresas costumam dar treinamento ao seu quadro pessoal de contabilidade. Mas deveriam ter um programa no mínimo anual de treinamento nessa área para garantir que seu pessoal esteja atualizado. É comum as empresas fazerem isso em outras áreas e deveriam fazê-lo também com a contabilidade. Os escritórios de contabilidade precisam fazer o mesmo”, diz Elorrieta.
Para quem quer adaptar-se ao Sped, a experiência da Adccont pode servir como guia. A primeira grande mudança do escritório foi na adaptação de sistemas. “Estamos investindo entre R$ 50 mil e R$ 60 mil na modernização de máquinas, na compra de um novo servidor e softwares. Para fazer o investimento a Adccont está usando uma linha de crédito do BNDES.”
Na qualificação da mão de obra, Ribeiro diz que começaram treinando profissionais que atendem clientes do escritório ligados a empresas estrangeiras – e por isso mesmo com um grau mais avançado de exigências para a contabilização. “Foi uma correria. Achávamos que o prazo para a entrega da escrituração contábil digital, que expirava em 30 de junho último, ia ser prorrogado porque a Receita ainda não havia sequer disponibilizado o formulário para a declaração de Imposto de Renda. Mas isso não aconteceu e acabamos debutando em Sped contábil,” informa.
Agora o Adccont está se adaptando à interação online com a Receita para contabilizar a NF-e. Com o Sped, para faturar a nota, a empresa precisa ter autorização prévia da Receita e não pode mais mandar a informação sumarizada. “Não podemos mais mandar parte do corpo, temos de mandar tudo, até as entranhas”, ironiza Ribeiro.
Segundo os especialistas da Aliz, o Sped exige uma contabilidade analítica. “Antes era feito o lançamento do valor total das notas fiscais emitidas naquele dia. Agora é preciso contabilizar nota por nota, informando o valor de cada uma, para quem foi emitida e quantidade de produto vendida”, acrescenta Parada.
Despreparo
A falta de mão de obra qualificada disponível no mercado também já foi detectada por Guillermo Braunbeck, professor da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (Fipecafi). O problema é mais grave quando o assunto é a elaboração de demonstrações financeiras em IFRS. “É difícil trazer gente dos bancos escolares preparada para trabalhar com as novas práticas contábeis. Existem mais de mil cursos de contabilidade no País, mas seus currículos são muito abertos e a maioria deles nem sequer tem em sua grade matérias que tratem da contabilidade internacional. Muita gente que sai da faculdade nem sequer sabe o que é IFRS”, diz o professor.
O IFRS coloca diante do profissional uma nova realidade estrutural, uma mudança profunda de conceitos. Não se trata apenas de aprender novas definições e lidar com elas. Como exemplo, Braun-beck cita a questão da primeira coisa que olha num balanço, que é o ativo. Na definição clássica, “ativos são bens e direitos”. Hoje a definição inclui a ideia de benefício econômico futuro. “É preciso enxergar a promessa de entrega de um valor na hora de classificar algo como ativo.”
Para usar o IFRS, o contador deve deixar de agir como uma máquina de registro e passar a ser um intérprete de eventos econômicos, e a exercer julgamentos. “Se antes o contador podia agir como mero fotógrafo, hoje precisa ser capaz de desenhar o futuro a partir das informações contábeis”, acrescenta o professor da Fipecafi. A nova postura não é simples. Incorporá-la é especialmente complicado para profissionais com muitos anos de prática no modelo antigo, porque significa uma mudança de modelo mental.
Diagnóstico
Preencher todas as lacunas de uma vez não é humanamente impossível. Para evitar cair em depressão diante da quantidade de conhecimento que vai precisar acumular para lidar com o Sped e com o IFRS, a recomendação do professor da Fipecafi é fazer um diagnóstico do que precisa aprender no curto prazo para atender as exigências do seu cliente. “O importante é evitar sair fazendo treinamento a torto e a direito, gastando tempo e dinheiro em vão. É preciso avaliar as necessidades do cliente e então se preparar para atendê-las. Tem de ir cobrindo as lacunas à medida que elas vão aparecendo”, recomenda.
Outro conselho que Braunbeck dá para o contador é achar formas de construir conhecimento. “Uma boa opção para fazer isso é levantar da cadeira e ir conversar com as outras áreas, sobretudo com o pessoal do departamento financeiro, onde houve mudança radical na contabilização de pagamentos com opções de ações, leasing, fechamento de negócios.” O professor também recomenda aos contadores “colar” nos profissionais de consultoria que a empresa tenha contratado para auxiliá-la a saltar para o universo do IFRS. “Depois que o contrato acaba, os consultores vão embora e quanto mais o contador puder aprender durante a consultoria, melhor para ele depois.”
Para os interessados em estar no topo do ranking de qualificação profissional vale uma consulta ao currículo global, desenvolvido por uma comissão intergovernamental, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), conhecida como International Standards of Accounting and Reporting (Isar). A comissão elenca nesse currículo tudo o que o profissional precisa saber para atender às exigências atuais da contabilidade internacional.
Para o contador que não quer perder o bonde da qualificação, os especialistas da Aliz recomendam também cursos para conhecer a tecnologia e a lógica dos arquivos digitais e de atualização contábil. Contadores que trabalham na elaboração de balanços precisam estar conscientes de que o IFRS não é estático e que tem sofrido mudanças constantes. Na área de IFRS existem boas opções na Fundação Getulio Vargas (FGV) e na Fipecafi, afirmam.
Para preparar-se para o Sped, a dica para o contador é primeiro entender o cenário da automação de processos de entrega de dados para o Fisco. Em seguida, buscar a melhor maneira de adaptar a infra-estrutura do escritório e aprender quais são os pontos de atenção para lidar com o Fisco digital. Conforme Zanini, com a escrituração digital, o contador precisa estar up to date com a última palavra em legislação tributária, o que não é a realidade atual a não ser dos grandes escritórios ou dos departamentos de contabilidade de companhias de primeira linha. Mesmo para estes, a tarefa não é fácil porque novas portarias são emitidas quase diariamente pela Receita.
Exceção
Na área de auditoria a situação do profissional está mais tranquila, de acordo com a presidente do Ibracon. “Não haverá falta de profissionais, até porque o universo de empresas obrigadas a auditar seus balanços é menor do que o daquelas obrigadas a fazer demonstrações contábeis.” São obrigadas a contratar auditoria para seus balanços as companhias abertas e as empresas de grande porte.
Na capacitação da mão de obra também há uma oferta maior para o auditor. Essa área está praticamente coberta pelas grandes empresas internacionais de auditoria que fazem importantes esforços de treinamento de pessoal em todo o mundo. Conforme Braunbeck, quem quiser mostrar ao cliente que está atualizado e que é capaz de dar conta do serviço no novo ambiente digital pode recorrer também aos programas de certificação.
A função do auditor é dar um selo de qualidade às demonstrações contábeis. Os profissionais que trabalham em grandes firmas internacionais não terão problemas para se adaptar. Mas o professor da Fipecafi diz que o desafio é grande para o pequeno auditor. “Será que ele está preparado?” O feeling do professor diz que não.
Fonte: Revista Razão Contábil
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua participação é muito importante para as discussões de ideias contábeis e outras mais. Obrigada!